sábado, janeiro 28, 2017

AO FAMOSO GESTOR DA PADARIA PORTUGUESA

Tenho amigos que escrevem muito bem. Muito e bem. Aqui fica a carta (publicada sem autorização prévia) de um desses amigos, dirigida ao dono de um negócio que apareceu na televisão a comentar o aumento do salário mínimo (link para a notícia - clicar):

Caro Camarada Nuno Carvalho:
Antes de mais, deixe-me agradecer-lhe o facto de vir a público defender a minha causa! Sou trabalhador por conta de outrem e acho absurdo que a lei não me permita trabalhar 60 ou 70 horas por semana. Tenho um tio que, entre 1950 e 1972 trabalhou quase esse número de horas nas minas da Urgeiriça e hoje está ali rijo como um pêro, na lista de transplantes para um pulmão. Não se queixa (não sei se da valentia ou da insuficiência respiratória, mas não se queixa).
O que interessa é que eu adoraria trabalhar 40 horas num lugar que me paga de salário quase dois terços do que preciso para arrendar um apartamento em Lisboa e o estupor da lei impede-me de trabalhar mais 14 horas por semana para poder acabar de pagar a renda ali, mensalmente, certinho.
E mais 11 horas por semana para poder pagar a eletricidade e a água, 3,4h para pagar a internet, 6h para o estupor do puto poder comprar os livros da escola e 40 minutos para o passe mensal, que isto de ter carro é desnecessário numa cidade com excelentes transportes como Lisboa. Ah, e não esquecer as 8,35 horas semanais extra para poder almoçar diariamente a sandes no Colombo. Sim, que isto de almoçar na Padaria Portuguesa não é para todos. Ao jantar toma-se um chazinho, que até desenjoa daquela mortadela toda da sandes do almoço.
Queria também agradecer-lhe o facto de tentar proteger-me de fazer despesas desnecessárias. Referiu - e muitíssimo bem! - a pouca vergonha de ter um smartphone ou coisas dessas. Especialmente num país como o nosso, onde pagar impostos, tratar da segurança social, fazer contratos, compras, vendas, tratar de transportes ou estudar se faz através de recursos em linha. Modernices. Tratar do IRS no telefone? Despesa absurda. Obrigado, Nuno por me defender deste consumismo. Vou voltar a fazer filinha na Repartição de Finanças da minha área de residência, que assim é que está bem.
Entretanto, o meu patrão lá fica 2 horitas sem o empregado, mas não faz mal, que o Raul fica lá no meu lugar, todo contente por poder trabalhar mais 2 horas a substituir-me e, assim, ganhar uns cobres para comprar o aparelho dos diabetes. Sim, que ele não pode contar com a mulher. Aquela flausina - que não tem outro nome - conseguiu arranjar emprego numa empresa um bocado bota-de-elástico: pagam-lhe 1783,45€ mensais e ela trabalha só 7 horas por dia. Diz que a empresa até lhes paga encontros de vez em quando, passeios de grupo e formação profissional. Tem uma mesa de pingue-pongue no bufete. Não lhes antecipo grande futuro. Diz que as empresas na Suécia e na Noruega são quase todas assim - outros que não tarda estão na bancarrota! Ah, se eles tivessem lá um Nuno como o nosso... Só é pena não a deixarem trabalhar mais horas, que ela bem gostava de escapar às conversas rebuscadas das amigas do ginásio. Ma o estupor da lei que não a deixa... Qualquer dia a mulher aparece-me em casa com uma depressão por não poder fazer as 12 horas por dia que tanto deseja.
Mas do que eu gostei mesmo foi de quando disse que um salário mínimo de 557€ era, de facto, um salário de 877€ porque é isso que o empregador paga. Isso é que é fazer contas! Por o dedo na ferida. Ah valente! Do que Portugal precisa é de gente assim!!
Está decidido: de hoje em diante, a diferença entre os 557€ e os 877€ que o patrão afinal me deposita no banco mensalmente, vai ser toda para gastar na Padaria Portuguesa!
Já agora, desculpe a pergunta: não é verdade que os salários e contribuições são deduzidos do lucro da empresa? Então o seu esforço não é tão grande assim... Aliás, como a empresa tem personalidade jurídica autónoma, o Nuno até nem faz esforço nenhum. A única coisa que faz, na verdade, é deixar de receber, em lucro, mais cerca de 20%. Sei que parece muito, mas considerando que se o seu trabalhador adoecer, o Estado paga o médico; se a sua empresa for assaltada, o Estado paga a investigação; se não lhe pagarem um jantar, o Estado paga o tribunal e, se o Nuno tiver um banco e este for a falência, o Estado paga o buraco, esses 20% de que se queixa até nem são assim tão mau negócio, pois não?
Mas eu compreendo. Às vezes vejo aquele seu colega empresário, nosso vizinho. Faz barcos. Não paga salários mínimos porque não quer gente na empresa a comer sandes de pão-ralado, a perder tempo de trabalho a pensar como pagar a prestação da casa ou com dores no joelho por não ter dinheiro para a fisioterapia, mas, depois de ler a sua entrevista e ver como se gere uma empresa a sério, tenho a certeza que vai mudar o padrão.
A propósito, eu também estou a pensar abrir um negócio. Tenho força de vontade e também tenho queda para a pastelaria. Não quer vir até cá dar umas ideias? Eu pago-lhe, claro. O ordenado mínimo. Sem contrato, que já não estamos em tempo dessas coisas. A nossa empresa vai ser modernaça. E ainda lhe dou oportunidade de fazer umas 30 horitas a mais por semana. Para fazer o gosto ao dedo. Sábados e domingos? Isso logo se vê.
A Padaria Portuguesa? Ó homem, isso é conversa antiga. Isso está lançado. Não precisa de passar lá o tempo todo. Largue isso e abrace um desafio a sério. Com animação, satisfação pessoal e com 60 a 70 horas semanais. Diga lá se não é de homem!!...
Do seu eterno fã:
Joaquim

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